Tela Noticias

A história dos 1,7 mil galegos que foram para Cuba atrás de fortuna e acabaram escravizados

A história dos 1,7 mil galegos que foram para Cuba atrás de fortuna e acabaram escravizados


Um acontecimento real e terrível, mas que ficou por muito tempo desconhecido porque seus protagonistas não conseguiram contá-lo, inspirou o romande ‘Azucre’, de Bibiana Candia. ‘Azucre’ é o primeiro romance da escritora espanhola Bibiana Candia.
Ricardo Domingo/Cortesia Fundación Telefónica via BBC
Eles se chamavam Orestes, Rañeta, o Tísico, Trasdelrío, José, o Satisfeito, e Tomás de La Coruña, e formavam um grupo de jovens que decidiram, em 1853, deixar a Galícia, na Espanha, em busca de um futuro melhor em Cuba.
Poderia ter sido apenas uma das milhares de histórias que marcaram a comunidade galega que, entre meados do século 19 e meados do século 20, viu gerações inteiras viajarem rumo ao continente americano, fugindo da pobreza, da fome ou da guerra.
Mas esses jovens foram os protagonistas de uma história de emigração que não foi contada, pelo menos não em detalhes, e que inspirou Azucre, o primeiro romance da autora galega Bibiana Candia.
A obra de ficção é baseada em uma história real e terrível – a de 1,7 mil galegos que emigraram para Cuba naquela época e foram escravizados por outro galego, Urbano Feijóo de Sotomayor, que estava radicado na ilha caribenha.
O livro começa com uma dedicatória que é uma completa declaração de intenções: “Aos emigrantes que nunca conseguiram contar sua história e aos que ficaram e nunca receberam uma carta”.
Candia acredita que esta história não havia chegado à memória popular porque seus protagonistas não conseguiram contá-la. Por isso, a autora deu voz a eles por meio de personagens cativantes que perdem sua inocência em uma brutal viagem ao terror.
A BBC News Mundo – o serviço em espanhol da BBC – conversou com Candia.
BBC News Mundo – Considerando o pouco que se sabe sobre esta história na cultura popular, como ela chegou para você?
Bibiana Candia – Eu também nunca havia ouvido falar dela. Um dia, uma amiga simplesmente me perguntou se eu conhecia a história dos galegos que foram levados para trabalhar com açúcar no século 19 e escravizados.
A princípio, fui muito cética e achava que não fosse verdade. Depois, pensei que se tratasse de uma anedota sobre algumas pessoas que foram e não tiveram sorte, e que essa história foi exagerada ao longo do tempo.
Mas ela me enviou uma mensagem com dois links, um deles para um documentário da Rádio e Televisão Espanhola. Ou seja, não era algo escondido.
Acredito que ela tenha me mandado com a ideia de que eu escrevesse um artigo.
BBC News Mundo – Mas, no fim, foi muito mais que um artigo… por que um romance de ficção?
Candia – Quando vi o que ela me mandou, eu disse: “Mas é muita gente; não é um episódio isolado, é algo muito mais sério”.
Fui procurar informações e encontrei artigos acadêmicos, atas judiciais e uma porção de documentos.
Comecei a perguntar às pessoas e ninguém conhecia a história. Ninguém sabia de nada, a não ser pessoas muito especializadas nas questões históricas, especialistas no século 19, ou pessoas de um nicho muito específico.
Nesse momento, surge para mim um enigma narrativo: se nós, galegos, temos essa tradição de literatura oral e de migração, como esta história pode não ter chegado até nós pela memória popular? Algo aqui não está certo.
Então, cheguei à conclusão, depois de muito analisar, de que realmente ela não havia chegado até nós porque, na realidade, seus protagonistas não a haviam contado.
Os relatos que temos valem para a parte oficial da vida, mas o legado humano trazido por uma história para a memória popular é a voz em primeira pessoa.
De forma que não tinha sentido escrever um artigo, pois ele não iria chegar aonde eu queria: o que é preciso fazer para que esta história seja conhecida?
O que é preciso é recriar essas vozes, recriar o relato popular, a memória coletiva. E, para isso, é necessário um romance, uma ficção – e que a ficção, de certa forma, restaure a realidade.
Capa do livro “Azucre”
Pepitas Ed. via BBC
BBC News Mundo – E o resultado é Azucre, que tecnicamente é um romance histórico, mas não tanto do ponto de vista formal, já que os dados históricos estão ausentes, e a voz recai totalmente sobre os protagonistas.
Candia: A prioridade era ver a situação a partir dos olhos deles.
É claro que o romance tem uma documentação formal muito séria. Os dados não estão no texto, mas precisei estudar tudo o que aconteceu para poder construir o mundo que os rodeia e colocá-los nas situações adequadas.
A chave era entender como se sentiram aquelas pessoas que saíram da sua aldeia, que não conheciam nada e, de repente, são colocadas em um navio e levadas para o outro lado do mundo sem ter nenhuma ideia.
Muitos deles nunca haviam visto o mar na vida, não sabiam ler, não sabiam escrever e aparecem em Cuba, que era como outro planeta, totalmente indefesos ante o que vai acontecer com eles.
Esta era uma história realmente forte. O importante, o crucial, o fundamental eram as vozes deles.
BBC News Mundo – São também personagens muito familiares para as pessoas que conhecem histórias de emigração, aqueles jovens que emigram da sua pequena aldeia e enfrentam um mundo totalmente desconhecido. São os protagonistas da história coletiva da Galícia.
Candia – No princípio, quando já sabia que teria que ser um romance, meu primeiro impulso foi pensar “eu não posso escrevê-lo, porque escrevo literatura contemporânea, poesia. Não tenho voz para contar isto.”
Mas, naquele momento, pensei no meu avô, que era um trabalhador de uma aldeia perto de Santiago de Compostela que nunca teve um trabalho qualificado e mal sabia ler e escrever. E pensei “claro, meu avô teria perfeitamente sido um deles”.
Foi ali que me dei conta de que eu os conhecia, sabia quem eles eram, pois são a memória do meu avô, do meu bisavô, do que eles contavam sobre as romarias, sobre andar e passar fome.
E isso faz com que você, mesmo que não tenha vivido, continue tendo contato muito forte com toda essa memória.
BBC News Mundo – Azucre é quase uma história de terror, mas você fica preso ao encanto e à inocência dos seus personagens.
Candia – O que mais me preocupava quando escrevi foi que, da mesma forma que, para mim, eles eram pessoas muito reais, eu queria que os leitores se encantassem com eles.
Porque, quando você vê a contracapa do romance, já tem todo o spoiler – você já sabe que eles serão escravizados. Quando você rompe essa tensão da narração desde o princípio, é preciso ter um incentivo para continuar lendo.
Meu único trunfo era então justamente conseguir com que os leitores ficassem encantados e quisessem ver o que iria acontecer com eles.
Disseram-me em uma apresentação que Azucre era uma obra sobre a perda da inocência. E me pareceu muito acertado.
Normalmente, quando uma pessoa fica adulta de repente, costuma ser sempre por um trauma, ou por uma morte, por uma perda, por um ataque, por uma guerra…
E é isso o que acontece com eles, que, dentro da sua pobreza e das suas condições de vida, eram gente inocente, meninos inocentes, e, de repente, a única coisa que eles têm pela frente é a própria sobrevivência.
Sim, eu queria que, dentro do terror, houvesse traços de luz, senão seria insuportável de ler. E parte disso era que eles fossem simpáticos, ternos, que fossem capazes de nos fazer rir, apesar de tudo o que estavam enfrentando. O que também é parte da realidade das histórias, mesmo nos momentos mais terríveis.
Bibiana Candia
Ángel Manso via BBC
BBC News Mundo – Você sentiu que havia uma espécie de dívida para com eles?
Candia – Totalmente. Acredito que, por um lado, este romance é uma homenagem a eles.
É verdade que a nossa literatura prestou muitas homenagens à imigração, mas eu acho que, sobretudo hoje em dia, quando estamos mais distantes das suas gerações, nós precisamos ainda mais ter uma ideia muito clara e sólida de como foi a vida naquele tempo.
Acho que é importante ter claro de onde viemos para sabermos quem somos. E toda essa história que nos precede vai nos afetar exatamente da mesma forma, quer a confrontemos ou não.
Por isso, ficamos mais adultos enquanto sociedade quando somos conscientes do que há por trás de nós, de que houve pessoas muito próximas de nós, em gerações muito próximas, que passaram por muitas dificuldades.
Acredito que, na construção da nossa memória coletiva, as pessoas nos contaram sobretudo a história dos heróis e das grandes obras, mas a memória dos anti-heróis, dos pobres da terra, dos que não foram ninguém, não desmente mas sim enriquece, e muito, a história épica.
Para mim, é muito importante ter claro que as obras muitas vezes são construídas sobre as vidas de muitas pessoas em desgraça.
Agora, por sorte, estamos no lado mais favorecido do mundo, mas essas coisas mudam, são cíclicas, e agora existem outros Orestes e outros Rañetas que estão tentando encontrar um futuro melhor em outras partes do mundo.
BBC News Mundo – Vemos isso agora nas histórias e penúrias de tantos imigrantes, incluindo os centro-americanos que atravessam o México para chegar aos Estados Unidos.
Candia – É uma constante. O século 19 foi o princípio do comércio global. De fato, o primeiro produto global que atravessou o mundo para ser vendido foram justamente as pessoas que saíram da África e foram levadas para a América.
E, desde então, é exatamente igual. O mundo se sofisticou tecnologicamente, mas os mecanismos que movem o mundo são os mesmos. Por isso, as pessoas continuam passando pelos mesmos ultrajes à nossa volta.
Continuam existindo pessoas desesperadas que irão tentar de toda forma buscar um futuro melhor. E sempre haverá também, infelizmente, pessoas sem escrúpulos para tentar aproveitar-se delas.
E essas pessoas estão no deserto do México, nas ofertas de trabalho que fazem com que mulheres latino-americanas ou do leste europeu venham para a Espanha trabalhar em serviços domésticos, mas acabem encontrando a prostituição, que é uma escravidão terrível.
Temos isso no Mediterrâneo todos os dias e, um ano atrás, vimos as pessoas tentando fugir penduradas em aviões no Afeganistão… e essas histórias, essas pequenas histórias, não estarão nos livros.
É um material fantástico para a literatura, que tem enorme potencial para contestar a História com letra maiúscula, que sempre será muito mais fria, contando apenas os sucessos.
Ilustração de uma plantação de açúcar em Cuba
Getty Images via BBC
BBC News Mundo – Falando de gente sem escrúpulos… esses meninos foram escravizados por um dos seus, por outro galego: Feijóo de Sotomayor. É um personagem que se tentou esconder de alguma forma?
Candia – Não, ele tem até uma página na Wikipédia [em espanhol e galego].
É um personagem clássico, um senhor que é deputado, tem total impunidade e, na verdade, sabia perfeitamente que não aconteceria nada com ele.
A empresa é dissolvida, ele fica com todo o dinheiro arrecadado até ali e, é claro, não precisa indenizar os trabalhadores. E fica estabelecido que, se algum dos trabalhadores quiser pedir indenização, precisa fazer uma denúncia individual em um tribunal de arbitragem.
É claro que foram muito poucos os casos. Ele não perdeu nenhum tipo de status por esta situação, o que é também uma história muito moderna.
Existem pessoas que se aproveitam da sua posição privilegiada para conseguir um negócio e enriquecer de forma fraudulenta ou criminosa. E depois não sofrem consequências pelos seus atos. E ainda mantêm sua posição social.
No romance, ele aparece basicamente como um fantasma, literalmente, por duas razões: porque, para mim, o importante eram as vozes dos meninos e porque também é um personagem amplamente conhecido, nós conhecemos muitos como ele. É um vilão bem clássico.
– Texto originalmente publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-62870493

administrator

Related Articles

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *