Charles Darwin andava desiludido com os estudos de medicina quando um ex-escravizado disse a ele maravilhas sobre a natureza nos trópicos e o ensinou como preservar animais coletados. ‘Foi a primeira e última vez que estive no lombo de um jacaré’, diz a legenda desta ilustração de uma famosa aventura de Waterton durante sua viagem a Demerara, Guiana, em 1820. Ele está acompanhado por indígenas e negros… um deles era aquele homem não identificado
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Em A origem do homem (1871), o segundo livro sobre a teoria da evolução de Charles Darwin, que é um dos textos mais estudados da história, cada detalhe foi examinado.
E há um que, apesar de não ser relevante para a compreensão de sua teoria revolucionária, intrigou os historiadores.
Após afirmar que, embora as raças humanas difiram em alguns aspectos, como um todo “elas se assemelham em alto grau” fisicamente e “de maneira igual e ainda mais marcada” mentalmente, ele observa:
“…durante minha estada entre os nativos da Terra do Fogo, a bordo do Beagle, fiquei profundamente impressionado com a observação de um grande número de traços característicos que evidenciavam como sua inteligência era semelhante à nossa; o mesmo me aconteceu com um negro de sangue puro de quem eu já fui próximo.”
Quem era aquele homem não identificado?
Uma pista estava nas notas autobiográficas do fim da vida de Darwin, na seção que descreve seus dias de estudante em Edimburgo (outubro de 1825 a abril de 1827), onde ele escreveu:
“Aliás, morava em Edimburgo um negro que tinha viajado com Waterton e ganhava a vida dissecando pássaros, o que fazia com excelência: ele me dava aulas em troca de um pagamento, e eu costumava sentar com ele muitas vezes, porque ele era um homem muito legal e inteligente.”
Era alguém que Darwin não tinha esquecido apesar de sua idade avançada, embora novamente não tenha citado seu nome… mas ele citou outro, Waterton, e esse era conhecido.
O excêntrico naturalista, conservacionista e explorador Charles Waterton (1782-1865) ficou famoso por suas expedições ao continente americano, de onde levou para a Europa o curare, o extrato vegetal paralisante que mais tarde foi usado como anestésico em operações cirúrgicas.
Waterton registrou suas experiências no livro Andanças pela América do Sul, o noroeste dos Estados Unidos e as Índias Ocidentais nos anos de 1812, 1816, 1820 e 1824, com Instruções Originais para a Perfeita Preservação das aves, &c. para armários de história natural, publicado em 1825.
A obra apresentou muitos britânicos, incluindo o próprio Darwin e seu colega pioneiro da teoria da evolução Alfred Russel Wallace, às maravilhas naturais dos trópicos.
E foi em uma dessas viagens, durante uma visita à plantação de seu amigo e mais tarde sogro Charles Edmonstone por volta de 1812, que Waterton começou a estudar e coletar espécimes da selva circundante.
Mas havia tantos exemplos de pássaros exóticos que ele queria preservar que não deu conta. Assim, como conta em seu terceiro diário, iniciado em 1820, ele procurou ajuda.
“Foi nesta colina, dias antes, que tentei ensinar John, o negro escravizado do meu amigo Sr. Edmonstone, a maneira correta de fazer pássaros.”
“Mas John tinha poucas habilidades, e levou muito tempo e paciência para incutir algo nele.”
“Alguns anos depois, seu senhor o levou para a Escócia, onde, sendo liberto, John o deixou e conseguiu um emprego no museu de Glasgow e depois no de Edimburgo.”
Seria ele aquele homem não identificado?
Numerosos historiadores concluíram que sim.
O nome do homem
Dos primeiros e últimos anos de sua vida, pouco se sabe.
Ele havia nascido escravizado na plantação de madeira do escocês Edmonstone na região de Demerara, no território que era então conhecido como Guiana Britânica, no norte da América do Sul.
Plantação de Charles Edmonstone em Mibiri Creek, perto do Rio Demerara, na Guiana
BBC
Como era comum, John recebeu o sobrenome de seu proprietário e, em 1817, viajou para a Escócia com ele, onde, por lei, foi emancipado.
Embora Waterton observe que Edmonstone trabalhou em museus em Glasgow e Edimburgo, pesquisadores dos Registros Nacionais da Escócia (a agência de registros e arquivos da Escócia), consultando arquivos de correios, encontraram um John Edmonstone, “empalhador de pássaros”, que em 1823 abriu uma loja no número 37 da Lothian Street, perto da Universidade de Edimburgo.
De qualquer forma, tudo indica que ele vivia da arte da taxidermia que Waterton havia lhe ensinado — uma habilidade requisitada na época, não só para fins científicos, mas também para decoração.
E era essa arte que o jovem Darwin queria aprender — aos 16 anos, ele chegou até Edmonstone solicitando seus conhecimentos em troca de “um guinéu (moeda de ouro) por uma hora todos os dias durante dois meses”, como contou em carta à irmã Susan.
Pássaros empalhados
Para Adrian Desmond e James Moore, especialistas na obra de Darwin e autores de A causa sagrada de Darwin, Edmonstone deu mais do que palestras técnicas sobre como um caçador refinado como ele poderia conservar seus pássaros como troféus.
Dois passarinhos de Galápagos (à direita), três espécies de tentilhões de Galápagos (canto superior esquerdo) e toutinegra amarela (dourada, abaixo à esquerda), da coleção da Estação de Científica Charles Darwin em Galápagos
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Em suas conversas, provavelmente contou a ele sobre as emocionantes aventuras de Waterton, sobre interessantes buscas por espécimes raros e sobre aquele mundo exótico que ele só descobriria se atravessasse o Atlântico.
Falou também sobre a terrível cultura escravista de Demarara, tema de particular interesse para alguém que, como Darwin, vinha de uma família abolicionista, acreditava que todas as raças pertenciam à mesma família humana e condenava a escravidão como pecado.
Na época, Darwin estava ficando desiludido com seus estudos de medicina, enquanto sua paixão pela história natural crescia.
E acredita-se que os relatos de Edmonstone sobre a vida nas florestas tropicais da América do Sul ajudaram a consolidar seu interesse pelo naturalismo.
Isso é provável, embora impossível de comprovar.
O fato é que o que ele aprendeu sobre taxidermia foi essencial para preservar os espécimes que Darwin coletou em sua viagem de cinco anos a bordo do Beagle.
E esses espécimes perfeitamente preservados foram fundamentais para formular a teoria que mudou nossa visão do mundo e nosso lugar nele como nenhuma outra.
Sobre Edmonstone, depois de 1843 não há vestígios.
Mas, embora não possamos contar a história completa de sua vida, os vislumbres recuperados pelos historiadores pelo menos o resgataram do esquecimento.
– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63189447
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