Não, não vou comentar o show de despedida de Milton Nascimento, o Bituca, que aconteceu no domingo (13). Primeiro, porque há gente mais competente para fazê-lo. Segundo, porque escreveria com enorme atraso, – três dias! – o que, hoje, representa uma eternidade na vertiginosa velocidade do noticiário digital. Terceiro, porque todo mundo tem lá suas reminiscências relacionadas à obra do genial mineiro nascido no Rio de Janeiro. Choveria, portanto, no molhado.
No fundo, pretendo só resgatar uma recordação recente, que se entrelaça com lembranças antigas. Milton Nascimento incorporou-se às minhas memórias infantis com “Coração de Estudante”, num contexto trágico: a morte do presidente eleito Tancredo Neves, em 1985. A música – sucesso à época – figurava entre as prediletas do primeiro presidente civil desde 1964. Tocou muito no velório do político mineiro, que encarnava as aspirações do Brasil que se desvencilhava do regime militar.
Desde então, para mim, “Coração de Estudante” traduzia as expectativas de um País livre, democrático, liberto do jugo de ridículos tiranos. E impulsionava a fé juvenil num Brasil melhor, que seria construído por aquela geração que, finalmente, viveria sem a opressão da ditadura militar. Enfim, a canção era uma síntese feliz da utopia e da liberdade.
Isso perdurou até 2018, quando vivi um episódio pitoresco. Era fim do ano, Jair Bolsonaro, o “mito”, já se elegera presidente e o clima era de desolação – plenamente justificada – pelo que se anunciava. Pois – do nada! – toca na Subaé AM, num fim de noite, “Coração de Estudante”. Uma sentença, instintiva, atravessou meu cérebro num átimo:
– Que absurdo!
De fato, a canção parecia deslocada naquele momento, de franca erosão da democracia e dos valores republicanos. Tocar “Coração de Estudante”, onde já se viu? Que despropósito! A extrema-direita ascendia e Milton Nascimento – com sua poesia – parecia deslocado no tempo, na História. A canção soaria, talvez, mofada, pueril.
A indignação inicial, porém, arrefeceu: na verdade, quem se deslocava no tempo – para trás – não era Bituca, mas o Brasil. Os últimos quatro anos confirmaram a impressão. Mas ouvi-lo – assim como tantas figuras geniais da música brasileira – parecia absurdo, disparate. Desde então, passado o susto inicial, suas canções mostraram-se símbolos de resistência, de esforço para manter a sanidade no País que chafurda na bizarrice da extrema-direita.
Passados quatro anos, o Brasil se deu uma nova chance, afastando-se um pouco do abismo. E Milton Nascimento, no seu show de despedida, mostrou que vale a pena alimentar as aspirações juvenis – e democráticas e civilizadas – que latejam em “Coração de Estudante”. Em suma, o cantor genial sintetizou, no fim do show, o sentimento que os brasileiros que cultivam a sanidade alimentam:
“Viva a democracia!”.
Que assim seja!