A comunidade católica polonesa foi abalada, na última semana, por duas investigações publicadas simultaneamente sobre o papa João Paulo II. De acordo com as apurações de jornalistas, o papa teria ocultado crimes de pedofilia cometidos por padres. O caso se tornou uma questão política, a poucos meses de eleições legislativas na Polônia. Na imagem, a maior estátua de João Paulo II, localizada em Czestochowa, no sul do país, em foto feita em 13 de abril de 2013.
JANEK SKARZYNSKI / AFP
A imagem de João Paulo II está sendo manchada em seu país natal por duas investigações jornalísticas divulgadas nos últimos dias. A primeira, realizada pelo canal privado de televisão TVN24 e transmitida em 7 de março; a segunda, publicada no livro do jornalista holandês Ekke Overbeek, “Máxima Culpa”. As duas denunciam que João Paulo II sabia de casos de pedofilia na Igreja. Com base em depoimentos de vítimas e documentos inéditos, as investigações revelam que o futuro papa, então arcebispo de Cracóvia, teria ajudado a ocultar crimes sexuais cometidos por padres, mudando os religiosos de paróquia.
As denúncias levantaram questionamentos sobre a santidade do ex-papa, canonizado em 2014, apenas três anos após sua beatificação.
Reações divididas
Dentro da comunidade católica, as reações estão divididas. Há aqueles que pedem que as acusações sejam esclarecidas. É o caso de certos padres e católicos liberais, como a filósofa Anna Karon-Ostrowska, ex-aluna e amiga de João Paulo II, entrevistada pela TVN24, que descreve essas revelações como “terrivelmente dolorosas”.
“Para muitos, é um verdadeiro choque”, observa o historiador e teólogo Stanisław Obirek, professor da Universidade de Varsóvia.
João Paulo II é um símbolo na Polônia, principalmente em Cracóvia, onde o papa fez sua carreira dentro da hierarquia eclesiástica. Imagens do ex-pontífice decoram as ruas da cidade e visitantes se aglomeram para seguir os passos do homem que liderou a Igreja Católica por mais de 26 anos, entre 1978 e 2005.
O passado do falecido papa ainda não havia sido investigado. “O primeiro a publicar um livro com uma análise crítica do ex-papa polonês foi o ex-dominicano Tadeusz Bartos em 2007”, diz Stanisław Obirek.
Cruzada Parlamentar
Mas também há quem rejeite as acusações formalmente.
“Os políticos de direita, alguns jornalistas e a maioria dos membros do clero se recusam categoricamente a admitir a existência de tal sistema de dissimulação”, observa o teólogo.
A mídia católica e os pesquisadores associados ao Instituto de Memória Nacional Polonesa questionam a credibilidade dos documentos recolhidos pelos autores das investigações, por virem dos arquivos do serviço secreto comunista, que na época lutava contra a Igreja. Por isso, eles afirmam que esses documentos são falsos e tendenciosos.
A Igreja polonesa – que recusou o acesso a seus arquivos aos jornalistas – denuncia um ataque político-midiático às tradições e valores da religião e da nação polonesa e rapidamente encontrou apoio na Câmara dos Deputados, dominada pelo partido nacionalista e conservador Lei e Justiça (PiS). Descrevendo João Paulo II como “o maior polonês da história e o maior dos pais da independência da Polônia”, o PiS, no poder desde 2015, empreendeu uma cruzada para “defender a memória” do ex-papa.
O primeiro-ministro Mateusz Morawiecki e seu governo elogiam principalmente a atitude de João Paulo II contra a União Soviética e da República Popular da Polônia. “Não permitiremos que seja destruída a imagem de um homem que o mundo livre considera um pilar da vitória sobre o império do mal”, escreveu o partido na resolução aprovada pelo Parlamento para proteger a imagem de João Paulo II.
Com o retrato do ex-papa na mão, os deputados do PiS votaram em peso a favor do texto. A oposição se absteve, já que votar contra era correr o risco de ser visto como pró-soviético. No contexto da guerra na Ucrânia, onde a Rússia é o maior inimigo da Polônia, seria como dar um tiro no próprio pé.
Estratégia eleitoral
“O PiS se apresenta como o único partido político capaz de garantir a identidade católica da Polônia e defender a herança de João Paulo II em seu discurso”, diz Stanisław Obirek.
Um discurso que atinge um eleitorado ainda muito conservador e tradicionalista.
Na Polônia, ser católico é principalmente uma posição política. É se opor ao aborto ou lutar contra uma chamada “ideologia LGBT”, por exemplo. “ A situação é semelhante à do Irã e de Israel, onde as autoridades religiosas sabem usar a política a seu favor”, analisa Stanisław Obirek. A poucos meses das eleições legislativas, o PiS pretende capitalizar a memória de João Paulo II.
O caso acabou virando uma questão diplomática, porque a TVN24 é propriedade do grupo americano Warner Brothers Discovery. O ministro dos Negócios Estrangeiros “convidou” o embaixador dos Estados Unidos, maior aliado da Polônia, para falar sobre este canal que o governo acusa de estar envolvido em uma “guerra híbrida destinada a provocar divisões na sociedade polonesa”.
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