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Encontro desagradável em corredor de shopping

Encontro desagradável em corredor de shopping

Combalido pelas sequelas da Covid-19 – mesmo após quatro doses de vacina – saí para comprar xarope e pastilhas. É que a garganta arranhava, incomodava. Num corredor de shopping – bem defronte a uma farmácia – o sujeito se aproximou. Branco, cabeleira branca, camiseta branca, pança avantajada. Encarnava o arquetípico cidadão de bem, cristão, conservador. Empunhava um celular. Foi se chegando sem bom-dia ou boa-tarde e largou esta:

– Saiu o relatório do Exército sobre as eleições. O general está falando nesse momento – exibia o celular – e quero ver o que o TSE vai dizer agora.

Prudente, permaneci calado.

– Dez mil urnas não tinham nenhum voto para Bolsonaro! Nenhum! E nem brancos e nem nulos. Só voto para Lula. Não é estranho?

Pensei em contradizê-lo, indagar de onde vinha aquela informação. Mas para quê? O sujeito podia encolerizar-se, gritar pelos corredores, armar uma arruaça qualquer. Melhor deixar essa turma da realidade paralela – nela orbitam os acólitos mais exaltados de Jair Bolsonaro, o “mito” – quieta.

Esperei, olho fixo no olho vidrado do patriota. O sujeito prosseguiu:

– Recebi agora a lista das urnas. Está aqui, no meu celular, em formato .pdf – Sacudia o aparelho, talvez tentando reforçar o argumento com o gesto. Por fim, resolvi ser irônico e lancei a frase fatídica:

– Parece que o jeito agora é dar o golpe!

Imerso no seu delírio, o sujeito sequer percebeu a ironia no olhar, no tom de voz. Apesar da máscara, seria fácil notar que debochava dele. Mas, ao contrário, ele concordou, enfático, com a frase:

– É isso mesmo!

Retomei o silêncio. Ele lá, rolando a barra do zap, garimpando as mentirosas novidades daquela verdadeira usina de fake news. Ali mesmo lembrei que lunáticos já tinham matado o presidente eleito Lula e prendido o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. Que dizer? Nada. O elemento foi saindo. Largou, então, a derradeira frase daquele quase monólogo desagradável:

– Gal Costa morreu!

Duvidei. Mas fui checar: era verdade. Notícia dolorosa, lançada pelo mais indesejado dos mensageiros. Olhei em torno, afastei-me do grisalho golpista e do seu celular. Até consegui mapear seu método: despeja uma série de mentiras para, por fim, apresentar um fato. Talvez aposte que o ouvinte mistura tudo no mesmo balaio, absorvendo sua cantilena delirante.

Mas o fato é que, fã de Gal Costa desde a infância, fiquei abalado com sua morte. A forma como a informação me alcançou tornou tudo pior. Até notei que o bolsonarista – mergulhado em suas belicosas fantasias – por um instante abandonou sua insanidade e expressou algum pesar. O que talvez indique que não perdeu a sanidade de todo.

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