De 2012 a 2022, enquanto número de alunos dessas faculdades de licenciatura só aumentava, qualidade dos cursos caía, mostra levantamento da ONG Todos Pela Educação. Ministério da Educação diz que tem como prioridade retomar o crescimento da modalidade presencial.
O índice de professores que se formaram em cursos de licenciatura à distância, em faculdades particulares, mais do que dobrou em uma década: saltou de 28,2% (2002) para 60,2% (2022). Nesse mesmo período, houve uma queda na qualidade dessas graduações.
É o que mostra um levantamento da ONG Todos Pela Educação, obtido exclusivamente pelo g1 e formulado a partir de dados do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep).
Os outros cursos de ensino superior, apesar de também registrarem um crescimento expressivo da educação à distância (EAD), ainda apresentam uma parcela de concluintes nessa modalidade muito inferior ao das licenciaturas: a taxa subiu de 9,2% para 30,3%.
“É um fenômeno específico [dos cursos de formação de professores], por causa da regulação frágil, dos preços baixos e da alta procura”, afirma Ivan Gontijo, gerente de políticas educacionais do Todos Pela Educação.
Dos que se formam em licenciatura, quantos estudaram em cursos particulares à distância?
Em 10 anos, índice nos cursos de formação de professor subiu de 28,2% para 60,2%. Nos demais, foi de 9,2% para 30,3%
Nesta reportagem, você entenderá quais são os principais problemas na formação docente no país, que ameaçam a qualidade da educação oferecida a crianças e adolescentes, e ainda coloca os recém-formados em posições precarizadas no mercado de trabalho:
✏️articulação frágil entre o que é ensinado na faculdade e o que é exigido dos profissionais no dia a dia das escolas (a carga horária, para alguns especialistas, é excessivamente teórica e pouco prática);
✏️estrutura falha no esquema de estágios obrigatórios;
✏️mercantilização de cursos EAD, produzidos a baixo custo com aulas gravadas e reproduzido para um número ilimitado de alunos, por meio de promoções de menos de R$ 200 por mês;
✏️mecanismos falhos do MEC ao controlar a qualidade dos cursos – o Enade, prova feita por ingressantes e concluintes dos cursos, é pouco adaptado à pedagogia e às demais licenciaturas, e a regulação na abertura/fechamento de graduações é frouxa, segundo educadores ouvidos pelo g1.
Ao g1, o MEC afirmou que instaurou um Grupo de Trabalho de Formação de Professores. “A melhoria e o aumento do rigor na regulação dos cursos de licenciatura, especialmente para cursos EAD, será um dos esforços empreendidos pela pasta.” O órgão disse também que fortalecer a modalidade presencial é uma prioridade.
Priscila Cruz, presidente-executiva do Todos Pela Educação, afirma que não basta que o MEC apenas demonstre insatisfação com a atual situação — precisa urgentemente coibir e regular cursos EAD de licenciatura.
“Sabemos que isso vai contra os interesses de grandes grupos de ensino superior, que têm aí uma fonte de lucro gigantesca, com pouquíssimos custos. Mas é algo que precisa ser enfrentado. Quem ganha [com o domínio da modalidade à distância] são poucos agentes, e quem perde é o Brasil inteiro.”
De cada 10 novos alunos das licenciaturas na rede privada, 9 optam por EAD
O Censo da Educação Superior, divulgado na terça-feira (10) pelo Inep, mostra que, na rede privada, 93,2% dos novos alunos de pedagogia e das demais áreas da educação (como geografia, história, física e química) escolheram estudar na modalidade EAD.
Um exemplo registrado pela reportagem: pelo Whatsapp, uma universidade privada de São Paulo oferece uma vaga em pedagogia em um curso híbrido – nem seria necessário fazer vestibular; bastaria mostrar o histórico escolar do ensino médio.
As mensalidades, de R$ 198, poderiam cair para R$ 5, em uma promoção vigente em setembro deste ano.
Quando o g1, sem se identificar, questiona quantas das aulas seriam presenciais, a resposta é: “depende de grade. Pode ser que você vá dois dias ou que você nem precise ir. Assim que se tornar aluna, será liberada [a programação]”.
Desempenho dos alunos da EAD é inferior aos da modalidade presencial
A queda na qualidade da formação dos professores já se reflete no Enade. O gráfico abaixo, com um levantamento inédito do Todos Pela Educação, mostra que, nos últimos anos, a diferença no desempenho de alunos de pedagogia em EAD em relação aos da modalidade presencial só aumentou.
Em 2014, aqueles que estudaram à distância ficaram cerca de 2,3 pontos atrás dos demais no exame. Na edição de 2022, houve um abismo de quase 6 pontos.
EAD x Presencial: o desempenho dos alunos de pedagogia
Notas no Enade mostram que diferença vem crescendo a cada edição
A mesma tendência de ampliação de desigualdades foi observada em outros 9 cursos de licenciatura (artes visuais, ciências biológicas, educação física, física, letras – português, letras – inglês, música e química).
Para Débora Jeffrey, professora titular da Faculdade de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), dois fatores colaboraram para um incremento ainda maior no ensino privado e na EAD nos últimos quatro anos, com queda na qualidade de ensino:
a falta de investimentos no setor público de educação durante o governo Bolsonaro, com sucessivos contingenciamentos e cortes no orçamento de universidades públicas;
e a pandemia, que aumentou a demanda por cursos à distância e alimentou um nicho de mercado que oferece mais flexibilidade para quem já está no mercado de trabalho.
Resultados para os profissionais: salários menores e funções mais precarizadas
Segundo o Todos Pela Educação, 56% dos alunos que se formam em pedagogia tiveram um desempenho abaixo da média no Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), ou seja, tiraram menos de 500 pontos na prova.
Em 2022, a maioria tirou cerca de 450 pontos, mostra o Censo da Educação Superior.
Pela baixa atratividade da carreira devido às condições de trabalho que ela oferece, a concorrência por vagas nas faculdades é menor. Desenha-se um ciclo:
Os estudantes aprovados na rede privada entram, em geral, com uma defasagem nos conhecimentos básicos, provavelmente pela baixa qualidade do ensino médio público. ➡️ Têm acesso a um curso superior de baixa qualidade. ➡️Após a formatura, enfrentam maior dificuldade de passar nos concursos públicos mais concorridos.➡️ São contratados como professores temporários, em escolas de pior estrutura.➡️ Ensinam alunos que já são mais socialmente vulneráveis e que, por tabela, continuarão recebendo uma formação escolar pior que a dos mais ricos.
“Os que passam no concurso vão dar aula para os alunos do centro. Os demais tendem a ir para a periferia – precisarão dar aulas em várias escolas, com uma qualidade de trabalho pior”, explica Gontijo. “Isso reproduz o ciclo da desigualdade.”
📋É comum ouvir que “não falta emprego para professor”. É verdade?
De fato, há a previsão de um “apagão” na formação de determinadas disciplinas do ensino fundamental II e do médio, que já faz com que docentes deem aula sobre assuntos diferentes dos quais estudaram na faculdade. Segundo o Censo da Educação Superior 2022, na rede privada, foram preenchidas apenas 3% das vagas em cursos para formação de professor de química e 2,4% nos de física. Nesse cenário, podem faltar docentes devidamente qualificados nas escolas.
Por outro lado, em pedagogia, por exemplo, o número de cursos EAD mais do que triplicou de 2010 a 2020: saltou de 112 para 345.
Amélia Artes, pesquisadora em educação na Fundação Carlos Chagas, afirma que já há uma “informalidade imposta” para pedagogos:
“Vemos casos de estudantes que vão atuar como babás ou cuidadoras, porque não encontram emprego no mercado formal. Escolas que poderiam contratar profissionais para o atendimento de crianças com deficiência acabam encontrando no curso de pedagogia uma mão de obra barata. Contratam alunos do primeiro semestre”, diz.
Por que a EAD pode ser um problema nos cursos de pedagogia e em outras licenciaturas?
Em decreto de 2017, o MEC passou a autorizar que instituições de ensino ofertem cursos apenas em EAD, sem a necessidade de também apresentarem a modalidade presencial.
Segundo os especialistas ouvidos pelo g1, em pedagogia e nas demais licenciaturas, a modalidade à distância deveria ser uma exceção — como para alunos de locais isolados e distantes de universidades físicas, por exemplo. O que se vê, no entanto, é um “boom” de novas instituições em regiões já saturadas de cursos.
As preocupações são as seguintes:
➡️Os professores formados em EAD vão dar aula a crianças e adolescentes no formato presencial.
“Eles não terão tido a vivência do dia a dia com os alunos. É preciso que haja troca diária entre os colegas e simulação de situações escolares”, afirma Gontijo.
➡️As aulas de EAD nem sempre são “síncronas”, com interações ao vivo e possibilidade de debates e esclarecimento de dúvidas. “Costumam ser gravadas em plataformas, com alunos respondendo a um quiz. Você monta o curso uma vez e o vende [todo ano]. O céu é o limite”, diz o especialista do Todos Pela Educação.
➡️Para quem dará aula em escolas, o contato humano é necessário, explica Débora Jeffrey, da Unicamp. “Há um prejuízo em formar profissionais que estarão atuando em salas de aula sem o preparo adequado.”
➡️Em geral, pelo que os dados do Inep indicam, o mais comum é encontrar como aluna de pedagogia uma mulher, com mais de 24 anos, que precisa conciliar os estudos com o trabalho. Ela aceita a EAD porque é o possível na rotina dela.
“Mas vamos pagar essa conta no futuro. Estamos proporcionando acesso ao ensino superior, mas a que custo? Estamos dando a oportunidade para que elas sejam profissionais de excelência?”, questiona Gontijo.
Nas licenciaturas, há também uma grande parcela de estudantes que já atuam em escolas, mas que buscam o diploma para cumprir a legislação, afirma Rodrigo Capelato, diretor-executivo do Semesp, entidade que representa mantenedoras de ensino superior no Brasil.
Como já estão no mercado de trabalho (e com baixas remunerações), acabam não conseguindo bancar mensalidades mais altas ou se preparar para vestibulares de instituições públicas.
“Precisamos de bolsa-permanência, porque quem se interessa por esses cursos são pessoas que não têm condições financeiras para se manter. Não adianta só cobrir a mensalidade”, diz.
O Pibid, programa que oferece bolsas de iniciação à docência aos alunos de cursos presenciais, foi enxugado nos últimos anos. Um levantamento do Todos Pela Educação, com base em relatórios da Capes, mostra que, em 2016, eram 89.905 alunos beneficiados. Em 2020, foram 29.856 — redução de 67%.
A atual gestão, do ministro Camilo Santana, afirma que está retomando o programa e que elevará o número de bolsas para 88.963.
Quais as críticas em relação à carga teórica dos cursos?
Nayara Barbosa, de 22 anos, formada em letras, matriculou-se em pedagogia EAD com o objetivo de se sentir preparada para dar aulas a crianças.
“Não sou muito fã [da modalidade à distância]; as aulas gravadas são muito ruins, nem vejo. E já é um curso muito teórico, sendo EAD, então, mal temos prática. A minha prática é nas escolas em que já trabalhava antes”, diz.
Essa é uma discussão que divide os especialistas.
Há quem critique os cursos de licenciatura pela alta carga horária de disciplinas teóricas e o pequeno espaço dado ao lado prático, como as noções de “como ensinar” e “o que ensinar”.
O problema seria agravado pela baixa qualidade dos estágios obrigatórios supervisionados. Em tese, os universitários deveriam ir a escolas de educação básica e, sob a tutela de um professor da faculdade, acompanharem as aulas e as atividades ministradas lá.
Relatos obtidos pelo g1 mostram que, na realidade, há estagiários que se sentem “escanteados” e que ficam presos a funções administrativas do colégio, sem refletirem sobre práticas pedagógicas.
“Se o aluno estagiário não tiver retaguarda, é como pegar médico residente e colocá-lo para atender um paciente direto. Por que isso é aceitável nas escolas?”, questiona Amélia, da Fundação Carlos Chagas.
Gontijo acrescenta que a profissão de professor “é essencialmente prática e não acontece de forma espontânea, por osmose, quando ele pisar pela primeira vez numa sala de aula”.
“Precisamos dar condições para que ele saiba o que ensinar e como ensinar. Quais as melhores estratégias? Como vão aprender? No Brasil, os cursos são muito voltados para história da educação ou sociologia da educação – ou seja, distantes da prática.”
Por outro lado, acadêmicos têm receio de que, ao reduzir a carga horária teórica, os cursos de licenciatura tornem-se muito técnicos e deixem de lado conhecimentos que sustentam o exercício da profissão.
➡️As Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) de pedagogia, que estipulam como devem funcionar os cursos, foram atualizadas em 2019 pelo Conselho Nacional de Educação (CNE). As disciplinas teóricas cederiam parte de seu espaço no currículo para as práticas.
➡️No entanto, a implementação das mudanças já foi adiada duas vezes: para 2022, por causa da pandemia, e depois para 2023. Segundo fontes ouvidas pelo g1, como há resistência por parte dos educadores, é possível que o documento seja revogado neste ano e substituído por uma nova versão. Questionado pela reportagem, o MEC não havia se pronunciado até a última atualização deste texto.
➡️O Todos Pela Educação defende as DCNs de 2019. Amélia, da Fundação Carlos Chagas, no entanto, diz que “não adianta dar aula sem desenvolver os fundamentos da educação”. “É uma tentativa de transformar a profissão em algo só pragmático, em vez de pragmático e político.”
Quais são os problemas do Enade e das avaliações dos cursos?
Outro problema em relação aos cursos de licenciatura é a maneira como é feita a avaliação do MEC.
Em geral, ela se dá a partir do Conceito Preliminar de Curso (CPC), índice considerado frágil por especialistas e que leva em conta, a cada três anos:
o desempenho dos alunos no Enade, prova feita pelos ingressantes e concluintes de cursos superiores;
a qualificação do corpo docente;
os recursos didático-pedagógicos (como laboratórios).
A nota vai de 1 a 5. Se um curso tirar 1 ou 2 (desempenhos insatisfatórios), deverá receber uma visita presencial de representantes do MEC, para que uma nova avaliação seja feita, de forma definitiva (que leva ao Conceito de Curso – CC). Quando, mesmo depois desta segunda chance, a nota continua baixa, o curso é fechado.
“A maioria dos cursos tem nota 3. Essa regulação não consegue captar aqueles que têm problemas, por causa de falhas na natureza da avaliação e de dificuldades de como agir diante de graduações ‘ruins’”, diz Gontijo.
Para o especialista, o Enade:
não consegue mensurar as competências dos professores. “São questões de múltipla escolha que não dão conta de avaliar dimensões ligadas à prática”, diz.
E tem um peso baixo nos índices de avaliação dos cursos, como no CPC. “Se meus alunos forem mal no exame, consigo compensar contratando mais professores doutores ou comprando mais livros. Escapo, assim, das sanções do MEC”, afirma.
Os mecanismos de avaliação atuais precisam ser “atualizados e adaptados aos novos tempos” de EAD, diz Jeffrey, da Unicamp.
“Devem considerar os materiais didáticos usados no curso, a qualidade da plataforma e a formação dos professores. São aulas gravadas que estão sendo multiplicadas? Essas variáveis precisam ser levadas em conta.”
📓MEC promete mudanças no Enade
O MEC afirmou que “o estabelecimento de um prazo para a extinção de um curso é de difícil estimativa, tendo em vista as diferentes etapas envolvidas neste processo”, mas que há o período de “um ano para demonstrar que superou as fragilidades apontadas na avaliação”.
A pasta reforçou também que “trabalha em uma proposta de aperfeiçoamento do Enade a ser aplicada, justamente, às licenciaturas. O objetivo é dar mais ênfase na avaliação dos conhecimentos profissionais do professor”.
Uma das mudanças ocorrerá a partir do Enade 2024, com a criação de uma comissão exclusiva para a elaboração das provas que avaliarão a formação docente, diz a pasta.
“Melhorar a regulação é melhorar a qualidade do serviço que será prestado para a população. O impacto é grande”, comenta Gontijo.
Fonte: g1