Organizações dentro da Igreja Católica existem até hoje — entre as mais famosas estão os franciscanos e os dominicanos. Obra de Domenico Ghirlandaio, feita no século 15, retrata o que seria a confirmação da ordem franciscana junto ao Vaticano
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A Europa atravessava um momento de transição naquele período, o fim da chamada Baixa Idade Média. Depois do feudalismo rural ter experimentado seu auge, burgos começavam a ganhar espaço em um movimento de urbanização em que a velha divisão entre servos que trabalham, nobres que guerreiam e religiosos que rezam era insuficiente.
Uma classe de comerciantes, ainda incipiente, começava a ser visível. Ao mesmo tempo, pela própria natureza da organização da vida em cidades, a pobreza deixava de ser uma chaga escondida e passava a ser perceptível nos espaços públicos.
Para historiadores, este contexto foi o causador do surgimento das chamadas ordens mendicantes, organizações dentro da Igreja Católica que existem até hoje — entre as mais famosas estão os franciscanos e os dominicanos. Isto porque, para muitos religiosos de então, não fazia mais sentido a ideia de um religioso enclausurado, em um mosteiro distante no alto de uma montanha. Para eles, a Igreja não deveria se esconder dos problemas do mundo, mas sim ir de encontro a eles.
“Essas ordens surgem num momento de mudança do mundo rural, em que o mosteiro é uma unidade autônoma, longe das tentações do mundo, para a vida urbana”, explica o historiador Alex Catharino, professor na Fundação da Liberdade Econômica. “É um momento de mudanças não apenas sociais, mas também artísticas, culturais e intelectuais.”
Ele lembra que a partir do ano 1000, a Idade Média viu um momento em que havia Cruzadas e o renascimento do comércio. E isto “acarretou no ressurgimento da vida urbana, mudando o centro da vida espiritual para as catedrais e também da vida intelectual para as universidades”, comenta o historiador.
“Nesse contexto que emergem as ordens mendicantes e elas começam uma expansão para toda a Europa, especialmente as cidades”, acrescenta. “Os religiosos deixam a paz de estarem enclausurados para se lançar num esforço de maior evangelização do mundo fora do mosteiro.”
Resposta ao tempo
“Esses frades responderam às novas necessidades de vida cívica que surgiam. Passaram a frequentar, principalmente, as cidades e atuar de forte modo nas universidades. Não é por acaso que a maioria dos teólogos deste período eram frades de ordens mendicantes, como é o caso de São Tomás de Aquino, dominicano, e São Boaventura, franciscano”, enumera Catharino.
“E apesar dos votos de pobreza, não havia incompatibilidade entre a pobreza material e a riqueza espiritual e intelectual. Eles ajudavam pobres e doentes e também serviam a Igreja com a cultura literária e o estudo”, diz o historiador.
Frei Marcelo Toyansk Guimarães, da Comissão Justiça, Paz e Integridade da Criação dos Frades Capuchinhos e assessor da Comissão Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, situa o nascimento das ordens mendicantes em um momento em que o chamado movimento pauperista era muito forte na Europa.
“A experiência religiosa dos mosteiros, mesmo os reformados como os cistercienses [da Ordem de Cister], não conseguia responder ao desenvolvimento cultural, social e econômico que se dava no período, com as cidades cada vez maiores e mais presentes”, afirma ele.
“Se a realidade dos mosteiros era compatível com a vida rural, feudal, com as cidades crescendo, a resposta da Igreja veio nesse campo”, comenta ele. “Havia uma Igreja poderosa e influente que, em contrapartida, não atendia ao surgimento da classe de comerciantes. Dessa realidade surgem os movimentos pauperistas.”
Alguns desses grupos, como os cátaros e os valdenses, foram tachados de hereges pelos líderes do catolicismo. No caso deles, como explica Guimarães, havia uma negação do material. Mas com os dominicanos e os franciscanos, a postura de não enriquecimento tinha a justificativa de uma volta aos pobres, de um serviço apostólico e social.
Consideradas as ordens mendicantes mais antigas, elas surgiram mais ou menos ao mesmo tempo. Os franciscanos foram oficialmente fundados em 1209, sob o nome de Ordem dos Frades Menores, por Francisco de Assis. Os dominicanos, ou Ordem dos Pregadores, foram oficializados pela Igreja em 1216 — a instituição foi fundada por Domingos de Gusmão (1170-1221). Em 1218 foi criada a Ordem de Nossa Senhora das Mercês, ou os mercedários. A Ordem do Carmo, ou os carmelitas descalços, data de 1226.
“Elas têm em comum a adoção de uma vida mista, que une a vida contemplativa e vida ativa. Além da contemplação que era adotada pelos monges, esses frades também abraçavam a vida antes adotada por outros religiosos seculares, militares e hospitalares”, contextualiza o historiador Catharino. “Esses frades adotavam ainda, além dos votos de obediência e castidade, o voto de pobreza, rejeitando para si a aquisição e acumulação de propriedades, abraçando a vida comunitária e vivendo de doações.”
“Cada uma dessas ordens tem uma constituição, tem uma origem, tem uma natureza, uma finalidade e suas características. Cada uma tem um carisma a ser trabalhado. Mas todas nasceram em um contexto medieval”, afirma frei Reginaldo Roberto Luiz, da Ordem dos Padres Mercedários em Roma.
“Os fundadores por excelência do fenômeno são os dominicanos e os franciscanos”, pontua a vaticanista Mirticeli Medeiros, pesquisadora de história do cristianismo na Pontifícia Universidade Gregoriana, em Roma.
“Mas podemos enquadrar dentro desse novo estilo de vida os carmelitanos, agostinianos, trinitários, mercedários e tantos outros, que surgiram depois. Lembrando que o nome, ‘mendicantes’, é uma descrição feita pelos historiadores. Os franciscanos e dominicanos, em si, jamais atribuíram esse nome às suas ordens religiosas.”
Dominicanos e a Virgem Maria, em pintura de Miguel Cabrera, do século 18
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Pobreza no centro da missão
“Essas novas ordens têm muito claro que é preciso ter a pobreza de modo central. Em vista de não enriquecer. São conhecidas como mendicantes por conta disso, dessa centralidade na vida apostólica”, pontua Guimarães. “Não são mais monges, estão no centro da cidade. Vivem e se deparam muito mais com a pobreza, diferentemente da realidade do campo em que os pobres vivem muito mais afastados. Na cidade, as pessoas estão aglomeradas, e a pobreza é mais visível e provocativa.”
Para sobreviver, eles recorrem à chamada “providência divina”, traduzida por esmolas de benfeitores. Por isso o termo “mendicante”. Guimarães explica, filosoficamente, que a ideia é “mendigar como justamente o ato de não ter propriedade, evitar a propriedade”. Esses novos religiosos assumem um modo de vida despojado, muitas vezes itinerante. E, principalmente, um compromisso de que não cairiam novamente na “espiral de enriquecimento” que, àquela altura, contaminava o clero.
“Em Francisco de Assis essa percepção é central”, afirma o frade. “Ao abraçar a vida religiosa, ele vê que não quer ser monge porque nota o enriquecimento dos mosteiros e o distanciamento dos mesmos. Propõe uma vida mais radical com a mensagem de Jesus, priorizando a doação, a ajuda ao próximo.”
Mas se o surgimento das ordens mendicantes era para dar respostas a alguns problemas daquele momento histórico, é preciso ressaltar também que havia a necessidade de se posicionar perante uma questão que incomodava no cerne da própria Igreja: a corrupção da alta cúpula, que enriquecia às custas da fé e dos jogos de poderes.
“Foi uma resposta direta à corrupção da Igreja e ao desejo de recobrar o cristianismo das origens e a radicalidade da vivência do Evangelho”, ressalta Medeiros. “Por isso que, nós, historiadores, identificamos esse movimento como uma manifestação.”
Ela frisa que esses religiosos, em sua origem, “sustentavam um ideal de pobreza e de uma vida religiosa sem privilégios, vivendo somente da doação de fiéis”. “Se tornaram um diferencial porque a referência da vida religiosa na época era a vida monástica, [cujos membros] acumulavam propriedades e tinham meios para garantir a própria subsistência.”
Fora das paredes do claustro
Para o estudioso de cristianismo antigo Thiago Maerki, pesquisador na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e associado da Hagiography Society, nos Estados Unidos, o ponto importante é essa visão ao encontro do mundo que esses novos religiosos da época adotaram, ao contrário da “espiritualidade de reclusão” dos monges.
“As ordens mendicantes vieram com pregação, apostolado, assistência aos pobres. De certa forma retiraram a espiritualidade de dentro dos muros e a inseriram no meio do povo”, compara ele. “Nesse sentido, foram pautadas pelo movimento urbano.”
“Se antes a ideia era fugir do mundo, porque o mundo ‘era pecaminoso’, a novidade era ir em direção ao povo, em uma volta ao que fazia o cristianismo primitivo”, ressalta Maerki.
Começo da reforma
Essa atitude de serviço e de vivência dos valores do evangelho fez com que essas ordens mexessem com o centro da Igreja. Era como um questionamento vindo de dentro para fora. Ao adotarem uma postura mais social e pobre, junto aos desfavorecidos, esses religiosos escancaravam a maneira com que muitos religiosos viviam, ostentando riqueza.
Para pesquisadores, isso acabaria sendo um dos fatores que, três séculos mais tarde, descambaria no movimento da reforma, em que o cristianismo acabou rachando e surgiram as igrejas protestantes.
“Elas [as ordens mendicantes] representavam, por excelência, o espírito da época”, diz a vaticanista Medeiros. “É resultado de uma sucessão de fatos desde a reforma gregoriana [realizada entre 1073 e 1085], através da qual a própria hierarquia da Igreja sentiu a necessidade de mudanças. A Igreja, grosso modo, estava cansada de seu próprio mundanismo, digamos assim. Há quem diga, por exemplo, que Lutero [que fez a reforma protestante, em 1517] é fruto de todo esse espírito reformador que começava a se manifestar na Europa.”
“As ordens mendicantes quebravam o círculo em que os religiosos não respondiam àquela época em que a pobreza crescia. Foi um movimento que pedia novas formas eclesiais”, comenta Guimarães.
Nos tempos atuais, essas ordens ainda existem e desempenham seus trabalhos na sociedade. “Apesar de mudanças conforme o tempo foi passando, muito se mantém desse espírito medieval de unir a vida contemplativa e ativa, os votos de obediência e castidade e também de pobreza”, avalia Catharino. “A Igreja não é estática. Tradição quer dizer, para muitos religiosos, a continuidade entre passado, presente e futuro.”
Ele ressalta que, no entendimento desses religiosos, “defender a tradição não é cultuar as cinzas, mas passar adiante a chama”. “Muitas dessas ordens se mantêm com o mesmo nome, mas atingem agora outras finalidades, principalmente trabalhos educacionais e obras sociais. Muitas paróquias e igrejas dessas ordens hoje tomam conta de escolas, preocupadas em evangelizar, principalmente em comunidades carentes e populações ribeirinhas”, comenta Catharino.
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