Filho de africanos escravizados, Benedito Massarari (1524 ou 1526-1589) ingressou na vida religiosa mas nunca foi ordenado padre. O motivo seria a cor de sua pele. Mesmo assim, ele acabaria se tornando santo: São Benedito. Filho de africanos escravizados, provavelmente etíopes, Benedito Massarari (1524 ou 1526-1589) ingressou na vida religiosa mas nunca foi ordenado padre. O motivo seria a cor de sua pele.
Mesmo assim, por conta de sua atuação, sobretudo junto a frades franciscanos em Palermo, na Sicília, hoje Itália, ele acabaria se tornando santo. São Benedito, também chamado pelos epítetos de “o Mouro”, “o Negro” e “o Africano”.
“Ele é considerado, no catolicismo pós-tridentino [após o Concílio de Trento, ocorrido entre 1545 e 1563], com todas as regras de canonização oficiais da Igreja, o primeiro santo negro, canonizado segundo os trâmites legais de todo o processo canônico”, enfatiza frei Alvaci Mendes da Luz, historiador cujo mestrado foi sobre a irmandade de São Benedito da cidade de São Paulo e autor do livro Um Preto no Altar: Resistência e Protagonismo em um Território de Disputas, com lançamento previsto para novembro.
Mas, como o próprio historiador enfatiza, pouco se sabe sobre a infância e a vida desse santo, antes de seu ingresso no exercício religioso. Ele nasceu na pequena cidade de San Fratello, na Sicília, e, de acordo com o historiador, mesmo filho de escravizados teria recebido a liberdade.
Autor de Os Santos de Cada Dia, o escritor e pesquisador J. Alves, membro da Academia Brasileira de Hagiologia, conta que Benedito era um dos três filhos de Cristóvão e Diana, cristãos etíopes escravizados por uma família siciliana católica.
Quando completou 18 anos foi “alforriado, ganhando a condição de homem livre”, afirma Alves. Passou a ganhar a vida como pequeno pecuarista. Até que ouviu um chamado: “Ó Benedito, de outro arado mais agudo necessitas, porque outra terra mais dura tens ainda que lavrar. Vende, pois, esta junta de bois e este arado e vem comigo!”
“Foi o que fez”, narra Alves. “Vendeu o arado e a junta de bois que possuía. Distribuiu o dinheiro aos pobres e tornou-se eremita, submetendo-se às mais rigorosas penitências na solidão das cavernas. Logo sua fama de homem misericordioso e compassivo se espalhou na região.”
Impedido de se tornar padre
“Primeiro, ele se filiou a um grupo de eremitas franciscanos na região de Palermo. Depois de um tempo, acabou se juntando a um convento franciscano da região, de uma ramificação muito pequena”, pontua Luz. “Construiu sua história no convento de Santa Maria de Jesus de Palermo, onde ficou até morrer.”
Segundo o pesquisador José Luís Lira, fundador da Academia Brasileira de Hagiologia e professor na Universidade Estadual Vale do Acaraú, no Ceará, a transição de eremita para frade conventual se deu quando Benedito tinha 21 anos. Mas há versões que afirmam que isso teria ocorrido mais tarde — Alves fala que foi quando o santo já tinha 38 anos.
Mesmo tendo passado a vida toda no serviço que abraçou, Benedito seguiu sem nunca ter sido ordenado sacerdote. Conforme explica o historiador Luz, isto tinha um motivo: a discriminação racial.
“Ele não se tornou padre porque isso não era permitido a homens negros”, afirma. “No convento, assumiu diversas funções, sempre de forma simples, como homem simples. A cor da pele definia os critérios para ascensão social ou não, ele era um homem negro e também no convento existia essa estratificação social.”
“No convento ele sempre teve funções mais, digamos, ‘subalternas’, fazendo por exemplo trabalhos manuais. Durante muito tempo ele foi cozinheiro, também trabalhou como o irmão encarregado da portaria… Mais no fim da vida ele adquiriu o status de guardião, de superior daquele convento”, conta Luz.
O historiador aponta que isso era algo “muito raro”, tanto pelo fato de ele ser negro quanto pelo fato de ele não ser padre. Lira acrescenta que ele foi “eleito superior do convento, apesar de nunca ter tido estudo formal e apesar de ser analfabeto” e isso tudo teria acontecido por conta de “sua sabedoria e santidade.”
O amado cozinheiro
“Cozinheiro e analfabeto, a todos surpreendia com sua sabedoria e o dom da profecia”, diz Alves. “Sua confiança em Deus era tão profunda que, com apenas o sinal da cruz, curava os enfermos, fazia os mortos reviverem e multiplicava os alimentos, para saciar a fome dos pobres. Foi superior do convento em 1587. Mais tarde, vigário conventual e mestre de noviços. Cumpridos esses ofícios, voltou à cozinha e cozinheiro morreu.”
“[Ao longo da vida,] São Benedito exerceu vários ofícios: cuidava da sacristia, da portaria, da limpeza, da lavanderia e da cozinha”, acrescenta Alves. “De todos, o de cozinhar é o mais lembrado pela tradição popular, que afirma que que o santo transformou a cozinha do convento em um lugar sagrado, em que as refeições tinham um indescritível toque de mãos de anjo e o segredo da multiplicação. São muitos os relatos edificantes que o enaltece como prodigioso cozinheiro.”
Em meio “às panelas ferventes e às cubas cheias de louças”, Benedito sempre agia com determinação e cuidado. “No seu tempo, o ofício de cozinheiro não tinha o glamour dos grandes chefs”, ressalta Alves. “Ser cozinheiro era um trabalho destinado a criados e servos.”
E foi por causa dessa atuação como cozinheiro que, por tradição, muitos católicos passaram a colocar uma imagem do santo negro na cozinha. E, para quem acredita, São Benedito é o que jamais deixa faltar comida na mesa.
“Muitos prodígios são atribuídos a ele”, explica Alves. “Por várias vezes, os alimentos se multiplicavam milagrosamente, para que nenhum pobre deixasse as portas do convento sem ser atendido. Quantas vezes ordenara ele que dessem aos pobres todo o pão que havia nos cestos, que a providência divina haveria de achar um meio de socorrê-los? Até hoje, em muitas casas, conserva-se o costume de colocar a imagem de São Benedito na cozinha, para que não falte à família o alimento necessário.”
Sincretismo à brasileira
No Brasil, essa propriedade de santo que não deixa faltar alimento ganhou contornos próprios em meio ao cenário de sincretismo religioso. “Ele foi um irmão cozinheiro, então há toda a relação de São Benedito com o pedido de prosperidade, para que não falte comida nas casas”, comenta Luz. “E para que não falte café, por isso há o costume popular de deixar um cafezinho para a imagem do santo no oratório da casa.”
O historiador conta que a figura acabou também apropriada pelas religiões de matriz africana. “Na umbanda, ele é o preto velho. E também há uma relação de São Benedito com os orixás”, pontua. Tanto na umbanda como no candomblé, ele é o orixá Ossain, da cura.
Mas há uma história curiosa que exemplifica bem como a tradição de rezar para São Benedito se transformou no Brasil: a data de sua festa. Segundo o Vaticano, o dia do santo é 4 de abril, que foi quando ele teria morrido.
É nessa data que está registrada a sua pequena sinopse hagiográfica no ‘Martirológio Romano’, o livro oficial dos santos. “Em Palermo, na Sicília, região da Itália, São Bento Massarari, chamado ‘o Negro’ por causa da cor da pele, que foi eremita e depois religioso na Ordem dos Frades Menores, sempre humilde em todas as circunstâncias e cheio de confiança na divina providência”, diz o texto.
Mas no Brasil, a festa em honra a São Benedito ocorre em 5 de outubro. “A data foi escolhida pela CNBB [a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil], nos anos 1980”, conta Luz.
É um fenômeno decorrente do sincretismo e de como São Benedito acabou sendo abraçado pelos católicos negros. “Em nossa herança colonial, muitas festas foram dedicadas a esse santo, como congadas, cavalhadas, marujadas, catumbis e moçambiques, festas mais populares do que religiosas”, diz o historiador.
Essas festas eram a maneira como católicos negros buscavam ecoar, a seu modo, as datas mais importantes do calendário litúrgico católico, como a Páscoa e o Natal. “Mas eram sempre nos dias seguintes, porque negros não podiam celebrar junto com os brancos nas igrejas”, contextualiza Luz. “Por exemplo: a Páscoa dos negros era na segunda-feira depois do domingo de Páscoa.”
Como São Benedito era figura cativa de todos esses festejos, cada região do país passou a adotar uma data do ano para honrar sua memória. De acordo com o historiador, a CNBB aceitou essa peculiaridade, mas decidiu unificar as datas em uma: o 5 de outubro.
– Este texto foi publicado em https://www.bbc.com/portuguese/geral-63126615
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