Alguns costumam comparar que houve ‘o Francisco de Assis e agora há o Francisco de Roma’, diz o teólogo Luiz Carlos Susin. Pintura do fim do século 13 ilustra São Francisco pregando aos pássaros
DOMÍNIO PÚBLICO
Quando, em 13 de março de 2013, o cardeal argentino Jorge Bergoglio foi apresentado à multidão na Praça São Pedro como o papa eleito para suceder Bento 16, houve um momento de expectativa: que nome ele escolheria para ser a marca do seu pontificado?
Pela tradição católica, papas assumem uma nova identidade quando chegam ao poder. Mais do que uma mera formalidade, o nome abraçado também procura, não raras vezes, trazem a mensagem que o líder católico pretende imprimir à sua época.
E Bergoglio se tornou Francisco. O primeiro papa da história da Igreja com este nome. Sem dúvida nenhuma, naquele instante, o argentino estava apresentando sua proposta ao mundo, numa espécie de plano de governo, antecipando o que viria a ser a tônica do seu pontificado.
Num contexto histórico em que a tragédia climática e ambiental parece irreversível, papa Francisco é uma voz lúcida acerca da necessidade de proteção ecológica, do “cuidado com a casa comum”, como ele tanto clama. E num momento de crise da humanidade, ele insiste na importância do acolhimento e no fundamental da caridade e da inclusão dos mais pobres.
Papa Francisco ecoa, oito século depois, os princípios de um dos santos mais famosos da história do cristianismo: São Francisco de Assis, cuja data é celebrada pelos católicos no dia 4 de outubro — de acordo com a tradição, ele morreu na noite do dia 3 para o dia 4 de outubro de 1226.
“A relação de papa Francisco com São Francisco de Assis é muito grande. São Francisco é a fonte de inspiração para o atual papado, pelo modo de conduzir a Igreja hoje. Francisco recupera uma Igreja mais próxima do evangelho, mais próxima de Jesus”, avalia frei Mario Tagliari, reitor do Santuário São Francisco, em São Paulo.
“São Francisco de Assis viveu em comunhão com a Igreja, mas provocou uma grande mudança a partir da radicalidade de viver o Evangelho”, pontua ele. “Papa Francisco busca seu nome por causa de São Francisco de Assis.”
Pintura de Giotto, feita no fim do século 13, ilustra o momento em que São Francisco desfez-se de suas roupas para assumir a vida junto aos pobres
Domínio público
Por causa disso, hoje alguns costumam comparar que houve “o Francisco de Assis e agora há o Francisco de Roma”, como lembra o teólogo Luiz Carlos Susin, também frade franciscano, professor na Pontifícia Universidade Católica no Rio Grande do Sul e na Escola Superior de Teologia e Espiritualidade Franciscana.
“Tudo até hoje mostra que de fato veio de Francisco de Assis a inspiração [para a escolha do nome do atual papa]”, comenta Susin.
O teólogo admite que, “pessoalmente”, desde o início achou “muito desafiante e complicado” para um papa assumir tal identidade.
“Porque Francisco de Assis, pelo seu modelo e sua sensibilidade, pela crise que atravessou e pela desapropriação que viveu, aquela liberdade com que viveu em relação às coisas e ao sistema do mundo, ele teve o que podemos chamar de sensibilidade antissistêmica”, contextualiza.
“Aquela inocência em não se enquadrar em coisa nenhuma… E o papa governa uma instituição imensa com mais de 1 bilhão de pessoas [católicas], com uma complicação enorme em termos jurídicos, institucionais… Parece um paradoxo, cria uma tensão muito grande.”
“E esse papa tem vivido essa tensão grande entre a pregação dele, bem franciscana, e o que ele tem de levar nas costas, um tamanhão institucional que Francisco de Assis não teria condições de carregar”, compara.
Susin recorda a homilia de inauguração do atual pontificado para destacar três pontos de conexão entre os dois Franciscos separados por 800 anos: a busca por uma Igreja mais simples, pobre e despojada; o diálogo ecumênico e o discurso pela paz; e o cuidado com a criação, com o meio ambiente.
“Podemos dizer que o papa tem desenvolvido seu programa baseado nesses três pilares bastante franciscanos”, argumenta.
Frei Marcelo Toyansk Guimarães, da Comissão Justiça, Paz e Integridade da Criação dos Frades Capuchinhos e assessor da Comissão Justiça e Paz da Conferência Nacional dos Bispos do Brasil, comenta que o papa “trouxe para Roma e para o próprio espaço do Vaticano diversas práticas” de auxílio aos pobres — como lavanderia para moradores de rua e encontros com movimentos sociais. E isto dialoga profundamente com o carisma franciscano.
Além disso, Guimarães enfatiza que a visão de São Francisco está presente de forma fundamental em duas encíclicas, a Laudato Si’ e a Fratelli Tutti. “Temos um papa que, em todos os sentidos, está marcado pela espiritualidade franciscana”, diz.
Biografia
Nascido em 1181 ou 1182 na cidade de Assis, atual Itália, ele foi batizado como Giovanni di Pietro di Bernardone e era filho de uma família relativamente bem-sucedida.
Seu pai, Pietro di Bernardone dei Moriconi, era um comerciante têxtil que tinha bom tráfego entre a burguesia estabelecida na época. Sua mãe, Pica Bourlemont, era uma mulher de raízes francesas.
Não há consenso sobre o seu apelido Francisco. Provavelmente, era uma referência à França. Para alguns biógrafos, porque desde pequeno o menino tinha encantamento pelo idioma, pela música e pela cultura francesa.
Para outros, seria uma homenagem da família aos parentes franceses da mãe. O que parece não haver dúvidas é que se trata de um nome que foi assumido antes da vida religiosa — ou seja, desde a tenra juventude Giovanni já era chamado de Francesco, em português Francisco, pelos seus amigos.
E teria sido uma juventude bastante agitada. Visto como excêntrico e indisciplinado, Francisco gostava de festas, bebida e não economizava o dinheiro do pai na hora de se divertir.
Por volta dos 23 anos, ele passou a ter uma série de visões místicas. Aos poucos, passou a se desinteressar pelos prazeres mundanos e convenceu-se que o melhor seria adquirir hábitos mais frugais e próximos dos pobres. Depois de um retiro em uma caverna, decidiu que não queria se casar — mas, sim, abraçar a vida religiosa.
Sonhos com mensagens avaliadas por ele como divinas passaram a ser recorrentes. E certa vez ele, ao ouvir os sinos que os leprosos eram obrigados a usar para alertar as pessoas do risco de contágio, em vez de afastar-se, aproximou-se.
A repulsa deu lugar ao cuidado: Francisco deu seu manto ao homem que sentia frio e sentiu um prazer inexplicável ao ver, em seus olhos, a gratidão.
Para os seus biógrafos, esse foi o ponto de virada em sua biografia, quando ele realmente decidiu dedicar-se aos pobres. Em seguida, Francisco pegou o estoque de tecidos do seu pai, vendeu a preços módicos no centro da cidade, e doou todo o dinheiro para a Igreja.
Pietro revoltou-se e descobriu o filho escondido em um celeiro. Levou-o para casa e deixou-o preso, acorrentado, no porão. Com a ajuda da mãe, Francisco conseguiu escapar. E foi procurar abrigo junto ao bispo.
O pai seguiu os passos, pretendendo tirar satisfações não só com o filho, mas também com o líder religioso da região. Para a surpresa de todos, Francisco debateu com o pai, tirou todas as suas vestes e devolveu-as a ele.
Renunciou a qualquer direito que teria como herança e partiu, nu, para uma vida entre os pobres. O bispo teria abençoado o jovem e admirado sua postura.
Isso teria ocorrido provavelmente em 1208. No ano seguinte, Francisco fundaria seu grupo religioso, a Ordem dos Frades Menores, com princípios claros de serviço aos pobres, humildade e uma profunda ligação com a natureza.
Essa postura de Francisco, com boas doses de rebeldia nas condutas para conseguir realizar seus ideais humanitários, faz com que muitos vejam seu papel como o de um verdadeiro reformador dos valores da Igreja Católica.
“Em minha visão, ele foi um homem estupendo que, mesmo antes de [Martinho] Lutero [(1483-1546), que rompeu com a Igreja e fundou o protestantismo] questionou a Igreja. Alguns pesquisadores dizem que ele foi um reformador sem sair da Igreja, pois questionava a riqueza e via a pobreza como algo significativo”, afirma o estudioso de hagiologias Thiago Maerki, pesquisador da Universidade Federal de São Paulo associado da Hagiography Society, dos Estados Unidos.
“Francisco tinha uma postura humilde, era o santo da alegria e fazia tudo pela paz. Pensava nos outros, tinha empatia, se preocupava com aqueles que forem”, comenta.
E sua atualidade também reside nesse fato. “A preocupação com os que sofrem é uma pauta contemporânea. Ele falava isso na Idade Média, criticando a miséria, o poder o status do clero que não ligava para os que necessitavam. Foi um santo extremamente complexo”, analisa Maerki.
“Suas ideias vão ao encontro daquilo que geralmente se prega no mundo contemporâneo, cada vez mais capitalista, material e do ‘eu sem pensar no outro’.”
Para o pesquisador, a figura de Francisco de Assis se tornou “extremamente simbólica” justamente porque em uma “época em que muitos defendiam a riqueza, inclusive a hierarquia eclesiástica”, ele acabaria, em sua ordem, decretando que os frades tinham de habitar casas mais simples, ter uma vida mais simples. “O hábito franciscano era a roupa das pessoas pobres da época”, exemplifica.
“Ele era uma pessoa antissistema, uma pessoa desconcertante. Estava sempre ao lado dos pobres, mas conseguia dialogar e trazer essa vida para o seio da Igreja”, analisa Guimarães. “Ele fez um processo radical de fraternidade com os mais pobres, mudando seu status de vida para ser pobres e isso é sempre significativo.”
Narrativas
Pesquisar sobre a vida e a obra de São Francisco é mergulhar em uma seara de múltiplas facetas. Por um lado, muitos de seus contemporâneos escreveram sobre ele, com as primeiras hagiografias tendo sido feitas pouco tempo após sua morte, em 1226. Contudo, os primeiros franciscanos também se viram em meio a uma guerra de narrativas.
“A vida de Francisco está envolta em polêmicas e isso perpassa toda sua trajetória”, diz Maerki, que dedica toda sua trajetória acadêmica, da graduação ao pós-doutorado, ao estudo de textos sobre São Francisco.
Ele conta que o primeiro relato sobre a vida do santo foi escrito pelo frade Tomás de Celano, que viveu aproximadamente entre 1200 e 1265. “Sua obra se torna uma espécie de legenda oficial da vida de Francisco, mas outras vão surgindo, escritas por outros companheiros de Francisco, inclusive por frades que eram muito próximos a ele e conheciam muito bem a vida dele. São várias hagiografias e escritos que começam a apresentar versões e outras facetas do santo. O que a gente conhece hoje é fruto de uma tradição, uma construção de ‘muitos Franciscos'”, avalia ele.
Maerki recorda que havia grupos internos dentro da ordem franciscana que “disputavam uma certa narrativa”. E, por isso, em 1260, o religioso João Boaventura — depois canonizado como São Boaventura — foi incumbido de “escrever uma nova vida [de São Francisco] para apaziguar os anônimos” e chegar à “biografia oficial”. Então houve um decreto que passou a desconsiderar todas as narrativas anteriores — e, acredita-se, muitos textos tenham sido destruídos.
“Acabaram sobrevivendo os que estavam guardados em bibliotecas de outras ordens religiosas, por exemplo, ou que caíram em mãos de particulares que não seguiram o decreto franciscano”, comenta Maerki.
Segundo o pesquisador, a versão oficializada foi a que predominou até o século 17, quando estudiosos passaram a resgatar outros relatos antigos sobre Francisco a fim de compor o mosaico de sua vida. No momento, o próprio Maerki está trabalhando em uma biografia de São Francisco escrita originalmente em português, do século 16 — em breve, uma edição da mesma preparada pelo pesquisador brasileiro deve ser lançada em livro. Trata-se da obra ‘Crônicas da Ordem dos Frades Menores’, escrita pelo franciscano Marcos de Lisboa (1511-1591) em 1557.
“Ele comenta, em uma espécie de prefácio, que andou por praticamente toda a Europa em busca de textos acerca de Francisco de Assis e, com base neles, escreveu”, conta. “De certa forma, ele antecipou um caráter científico de construção da história, não queria construir a história baseada em achismos ou naquilo que ouvia falar, não queria depender da tradição oral.”
Natureza
Se hoje São Francisco é visto como o santo mais ligado ao meio ambiente, é preciso lembrar que essa noção não encontra eco nos discursos de seu tempo. “Muitas vezes ele é tomado como uma espécie de ícone para a causa ambiental mas isso é uma construção muito recente”, argumenta Maerki.
“Obviamente que essa questão ambiental não era uma preocupação, uma demanda do mundo medieval”, salienta. “O que temos nas primeiras legendas sobre São Francisco é justamente esse respeito que ele tinha para com a natureza. Ele chamava toda a natureza de irmã, a lua era irmã, o sol era irmão, os pássaros eram irmãos, a Terra uma grande mãe. Esse respeito, mais tarde, foi interpretado com um viés ecológico.”
“Mas essa não foi obviamente uma preocupação de São Francisco nem dos primeiros franciscanos”, ressalta.
Susin atenta para o fato de que essa ligação com a natureza está presente na iconografia. “É muito difícil a gente ver uma representação dele sem um passarinho, sem um animal junto”, comenta. “A interpretação romântica do século 19 fez isso de forma a colocar o sentimento no centro da espiritualidade, em contraposição à racionalidade mais científica.”
“Um dos biógrafos dele diz que ele tirava até a minhoca que estivesse passando no meio de um caminho para que, quando viesse uma cavalaria, ela não fosse pisoteada”, diz Tagliari. “Ele pregou aos peixes, aos pássaros. Por isso tornou-se protetor da natureza e padroeiro da ecologia. Mas não de uma ecologia unicamente utilitarista. A relação de Francisco com a natureza é fraterna, no sentido de que nós, os animais e as plantas fomos feitos por Deus e somos, portanto, irmãos.”
Em carta apostólica publicada em novembro de 1999, o papa João Paulo 2º. (1920-2005) proclamou São Francisco como “o celestre padroeiro dos cultores da ecologia”.
“São Francisco faz um movimento muito forte de integração. Ele abre a ideia de sermos irmãos de toda a criação”, explica Guimarães. “Um caminho intenso de ser fraterno. Por isso ele é o santo das relações saudáveis e integradas, convidando-nos a um reajuste nas diversas relações com a sociedade, buscando uma vida com o próximo, com Deus e com toda a criação.”
Literatura
Francisco de Assis deixou escritos de punho próprio. Sua obra mais conhecida é o famoso ‘Cântico das Criaturas’, também chamado de ‘Cântico do Irmão Sol’. O texto foi composto originalmente no dialeto da região da Úmbria e é apontado como um dos primeiros registros escritos no idioma italiano.
“Francisco é considerado por muito teóricos como o primeiro poeta italiano e isso não é pouca coisa”, lembra Maerki. “Foi um dos primeiros a escrever poesia no vernáculo italiano, no dialeto umbro. Torna-se muito importante para a literatura italiana.”
Esse reconhecimento não é algo apenas dos dias atuais. Considerado o maior poeta da língua italiana, Dante Alighieri (1265-1321) dedicou a São Francisco todo o cântico 11 reservada ao paraíso de sua obra-prima, A Divina Comédia.
Este texto foi publicado originalmente em www.bbc.com/portuguese/geral-63126004
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