Especial do SP1 discute os desafios da pandemia na educação infantil. No segundo capítulo, dados da Pnad Contínua Trimestral mostram que, em 2021, estado chegou a ter uma em cada cinco crianças de 5 e 6 anos fora da pré-escola, etapa obrigatória de ensino. Quando a pandemia foi decretada pela Organização Mundial da Saúde (OMS), a pequena Celina, de Moema, na Zona Sul de São Paulo, tinha pouco mais de um ano de vida. O Antonio, de Osasco, na Região Metropolitana, já tinha completado dois, e a Rute, do Butantã, na Zona Oeste, fez três anos naquele mesmo mês de março de 2020. Mas a trajetória escolar das três crianças seguiu caminhos bem diferentes desde então.
O Antonio, por exemplo, só voltou a frequentar as aulas presenciais neste ano, depois que a vacina contra a Covid-19 foi liberada para ele.
“O dia que ele tomou a vacina foi um dia mais importante da nossa vida, depois do nascimento dos filhos, é claro”, explicou a mãe, a geógrafa Michelle Palhuca, sobre 2 de fevereiro de 2022.
ESPECIAL EDUCAÇÃO INFANTIL
Capítulo 1: Como a quarentena afetou o fechamento de mais de 500 escolas infantis em SP e tirou 16 mil vagas só na capital
Antonio Palhuca, de 5 anos, deixou o ensino presencial em março de 2020 e só retornou dois anos depois, após tomar a primeira dose da vacina contra a Covid-19
Hélio de Oliveira/TV Globo
Dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PnadC), do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), indicam que a família do Antonio não esteve sozinha na decisão de desmatricular as crianças de educação infantil.
Entre o segundo e o terceiro trimestre de 2020, a porcentagem de crianças de 5 e 6 anos que não frequentavam a pré-escola dobrou de 7% para 14%. A taxa continuou aumentando trimestre a trimestre até chegar a 20% entre janeiro e março de 2021. Isso quer dizer que, com a incerteza crescente sobre a duração da quarentena, uma a cada cinco crianças dessa faixa etária deixou de acompanhar as aulas no primeiro trimestre de 2021.
No trimestre seguinte, entre abril e junho de 2021, a porcentagem caiu pela primeira vez, para 16%, mas ainda era quatro vezes mais alta do que os 4% registrados no mesmo período de 2019.
No início de 2022, ela ainda seguia na casa dos dois dígitos, com 11% das crianças fora da escola.
A situação só retomou o patamar de antes da pandemia no trimestre com os dados mais recentes disponíveis, entre abril e junho deste ano, meses após a aprovação da vacina pediátrica, para crianças a partir de 5 anos de idade.
Ao contrário da creche, que tem matrícula facultativa, a pré-escola é uma etapa obrigatória da educação brasileira. Desde 2016, todas as crianças e adolescentes de 4 a 17 anos precisam frequentar as aulas regulares.
A regra e o prazo foram incluídos nas 20 metas do Plano Nacional da Educação (PNE) atual, mas, segundo o Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), responsável pelo monitoramento das metas, dados preliminares já indicam que a pandemia provocou um retrocesso na universalização do ensino para as crianças de 5 anos.
“A cobertura no atendimento de crianças de 5 anos caiu dramaticamente, chegando a 84,9% em 2021, patamar muito inferior ao estimado em 2019 (97,2%) e abaixo da linha de base do PNE em 2013 (90,9%)”, afirmou o instituto sobre o atendimento nacional em junho deste ano.
A matrícula escolas de crianças de 4 e 5 anos é obrigatória em todo o Brasil desde 2016
Hélio de Oliveira/TV Globo
Vacina x frequência escolar
Retirar os dois filhos da escola enquanto eles não estivessem protegidos contra o novo coronavírus foi uma decisão que Michelle tomou porque ela viu de perto o sofrimento que a doença pode causar. Em outubro de 2021, Antonio e o irmão, Ernesto, foram infectados pelo Sars-CoV-2.
“Ver o filho doente não foi fácil”, explicou ela ao perceber que as crianças estavam com sintomas. “Pedi para meu marido levar no pronto-socorro. (…) A médica mandou ele voltar para casa sem testagem porque ela falou que criança não pegava Covid. Nesse mesmo dia ele piorou bastante, a febre aumentou muito rápido e ele estava dormindo. Eu acordei ele, dei um banho gelado, só que a febre não baixava. Aí eu entrei em pânico, porque vi que ele estava desmaiado, em processo de convulsão.”
Michele diz que o levou de volta ao hospital, mas que a testagem só foi feita no dia seguinte, porque ela pagou. O resultado veio positivo. “Ele ficou muito doente com todos os sintomas. Febre, diarreia, vômito, calafrio, não conseguia se alimentar por conta da garganta que estava doendo”, lembra ela.
No total, Antonio passou cinco dias mal, e inclusive perdeu peso por causa da doença.
Como Antonio teve quadro grave de Covid-19, a geógrafa Michelle decidiu esperar pela vacina pediátrica antes de levá-lo de volta à escola infantil
Hélio de Oliveira e Juan Silva/TV Globo e G1
Interação e desenvolvimento
Na casa de Celina, a situação foi diferente. Mesmo tendo ficado sem emprego por alguns meses a partir de abril de 2020, a mãe dela, Camila Santiago, decidiu manter a bebê na escolinha do bairro em que moram, em Moema, na Zona Sul de São Paulo.
Camila conta que três motivos a levaram a optar por esse caminho: o desenvolvimento da filha, o foco dos pais no trabalho e a vontade de não contribuir com a falência da escola.
“Nos dias em que ela precisou ficar em casa, a gente tinha que deixar [a filha] na frente da televisão, porque tinha limitação de espaço para fazer as outras atividades. (…) Então, pra mim, a creche tinha essa opção de ela interagir com outras crianças, ter atividades direcionadas.” (Camila Santiago, mãe da Celina)
A pequena Celina Santiago, de 4 anos, viveu pouco a experiência do ensino remoto, e retomou a frequência na creche privada em que estudava desde bebê ainda em 2020, quando o governo começou a retomar o ensino presencial
Hélio de Oliveira/TV Globo
Anna Helena Altenfelder, presidente da ONG Cenpec Educação, explica que, apesar de não ser uma etapa obrigatória da educação, a creche não é apenas um lugar onde a criança recebe cuidados.
“[A creche] é um espaço educativo, onde educadores que se formaram, que se especializaram, têm uma intencionalidade pedagógica. Nós chamamos de intencionalidade pedagógica aquele conhecimento que o profissional tem de que atividades, que ações ela vai propor para as crianças, respeitando os seus direitos de brincar, de explorar, de se relacionar e de se movimentar”, diz.
Para Fernando Padula, secretário municipal de Educação de São Paulo, a brincadeira, o estímulo à leitura e a interação são fundamentais nessa faixa etária. “Não é à toa que as creches têm professores, pedagogos, justamente para trabalhar o desenvolvimento dessas crianças.”
Efeitos do isolamento
No início da quarentena, os pais de Celina acreditavam que o isolamento duraria pouco, e chegaram inclusive a passar uma temporada em um sítio no Interior para garantir mais espaço para a filha.
Celina chegou a participar de algumas atividades escolares remotas, para rever os colegas e professoras, e matar as saudades.
“Mas conforme foi aumentando o tempo de pandemia, eu vi que os negócios estavam assim, com problemas de presença de pessoas. E eu não queria ser mais uma a deixar a escola na mão”, lembra ela. A solução foi aproveitar a redução de gastos porque a família passou menos tempo fora de casa, e negociar um desconto com a escola. “A gente teve uma conversa para poder reduzir do lado deles, o que desse, em custos variáveis. E a gente conseguiu manter, para que a escola não fechasse.”
Assim que o governo autorizou, Celina já estava de volta às aulas presenciais e, segundo a mãe, mostra poucos sinais de que a quarentena tenha afetado seu desenvolvimento. Mas uma coisa mudou: a relação da pequena com a tecnologia, principalmente o tablet à qual ela ficou habituada quando ficou confinada em casa com os pais trabalhando. “[O tablet] é o que tenho que ter mais atenção. Se deixar ela fica o tempo inteiro. Foi um mal necessário mesmo.”
Camila Santiago, que trabalha com vendas, explica que a filha sofreu poucos efeitos do isolamento; o pior, segundo ela, foi criar o hábito de usar o tablet
Hélio de Oliveira e Juan Silva/TV Globo e G1
Migração da rede privada para a pública
A Rute, hoje com cinco anos, também continuou matriculada durante toda a pandemia, mas acabou tendo que trocar de escola, entra outras mudanças familiares. Com a nova dinâmica da convivência dos quatro membros confinados na mesma casa (a mãe, o pai, a irmão mais velha e a caçula Rute), o casamento dos pais se desfez. Além disso, seu pai, Carlos Eduardo da Silva, perdeu em junho de 2020 o emprego de gestor de uma academia esportiva.
Com o aperto nas finanças, ele e a mãe tiveram que tomar a decisão de transferir a pequena e a filha mais velha, Esther Eduarda, de 10 anos, da rede particular para escolas municipais.
O objetivo era cortar os gastos educacionais de R$ 3 mil por mês, em média.
“Primeiramente a gente fez as planilhas. E não estava fechando. E aí começaram as dívidas. E aí a gente entendeu que precisava se equilibrar. E aí, pra poder equilibrar, teria que mexer na escola, porque o valor era alto. Não poderia tirar um plano de saúde pra poder deixar na escola.” (Carlos Eduardo da Silva, pai da Rute e da Esther)
Segundo ele, hoje ambas já estão adaptadas, e a mais velha, que entende e aceita a explicação de que a mudança é um sacrifício temporário, até que a família volte a ter condições financeiras.
Carlos Eduardo da Silva perdeu o emprego e precisou cortar do orçamento os gastos de cerca de R$ 3 mil com a escola particular das duas filhas
David Faria e Juan Silva/TV Globo e G1
Turmas maiores e participação menor
As duas maiores diferenças sentidas por ele, que já trabalhou na rede pública como professor de educação física, são a grande quantidade de alunos por professora, e a baixa participação dos pais no processo educacional.
“Senti um impacto muito forte, como sinto até hoje. A grande maioria [dos pais] não participa, pra saber como tá o andamento, da evolução do aluno, então isso eu sinto bastante”, explica ele.
O pai lembra que Rute, quando mudou para a rede pública em 2021, conseguiu a vaga em apenas duas semanas, mas passou a estudar em uma turma com 40 crianças para uma professora. “E 20% das crianças não sabiam ler ou escrever”, ressalta ele. “Aí foi onde eu questionava: como a professora consegue ajudar nesse processo de aprender a ler e escrever, e os outros darem continuidade no processo de aprendizagem? Então a gente percebeu aí uma dificuldade muito grande do sistema. Chegou fevereiro, março, abril, a maioria [dos professores] já tinha saído de licença.”
Carlos Eduardo com as filhas Esther, de 10 anos, e Rute, de 5
Arquivo pessoal/Carlos Eduardo da Silva
A mãe das duas manteve o emprego, mas o pai, aos 45 anos, precisou mudar de carreira, e hoje trabalha como autônomo.
O plano, agora, é manter as duas crianças na rede pública de ensino no ano que vem, mas retorná-las à escola particular a partir de 2024. “Esse ano a gente meio que conseguiu dar uma estabilizada. A gente vai permanecer ano que vem para que no próximo a gente possa estar com um suporte financeiro pra seguir [na rede particular] até a faculdade.”
‘Novo normal’ no comportamento e no desenvolvimento
Enquanto isso, a família tenta lidar com os diversos impactos trazidos pela pandemia, que incluem aumento da ansiedade, de peso e dos atritos entre as irmãs. “A gente está fazendo vários trabalhos com psicólogos, pela saúde delas”, explicou.
Padula, da SME-SP, ressalta que o retorno dos estudantes às aulas presenciais também vem demonstrando um impacto do isolamento no desenvolvimento de habilidades, inclusive das crianças menores que não frequentaram a creche nos dois primeiros anos da pandemia.
“É claro que ela não vai estar ali sendo alfabetizada ou aprendendo português, matemática”, diz o secretário. “Mas essa criança precisa ter interação. Muitas vezes ela ficou sozinha. Ela precisa brincar, precisa que leiam pra ela.”
Outras habilidades, como amarrar o cadarço e compartilhar brinquedos, estão entre as que costumavam já ser ensinadas na creche, e agora exigiram dedicação extra dos professores da pré-escola para lidar com grupos heterogêneos.
“Eles vão chegar em diferentes estágios na educação infantil. Não são todos robôs que aprendem ao mesmo tempo, com a mesma velocidade. É preciso dar um passo atrás e voltar eventualmente alguma abordagem que não seria normalmente daquela etapa. Recuar um pouquinho para que todos estejam no mesmo patamar e tenham as mesmas condições de desenvolvimento.”
Anna Helena Altenfelder, do Cenpec, ressalta, porém, que não é o caso de se falar em uma geração perdida. “Temos uma situação grave. É preciso recuperar, é preciso recompor as aprendizagens, e isto é possível com medidas de curto prazo e com medidas de médio e longo prazo”, explicou.
A ação imediata, segundo ela, é “buscar todos as crianças e trazer para a escola” e articular com a saúde e a assistência social um espaço de promoção da saúde mental. Depois, reorganizar o currículo para desenhar “estratégias de recomposição de aprendizagem”. Por fim, oferecer “um apoio grande, seja do ponto de vista emocional ou técnico-pedagógico, de condição de trabalho para os professores. Os professores devem ser a prioridade.”
*Hélio de Olivera, David Faria e Edgar Rocha (imagens), Kayan Albertin, Elcio Horiuchi, Juan Silva e Wil Nogueira (infografia e arte), Amanda Ferreira (edição de texto) e Fábio Rodrigues e Glauber Sousa (edição de imagem)
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