Nós passamos cerca de um terço da vida dormindo e os sonhos que temos nesse estado causam grande interesse. Embora nem todas as pessoas recordem as histórias vividas durante o descanso noturno, algumas têm sonhos recorrentes.
Reprodução: BBC
Quando era criança, tive, durante anos, um sonho que se repetia com frequência. Não era um sonho agradável, e ainda me lembro da sensação de tentar controlar como ele acabava. O desfecho que eu temia nunca acontecia, mas eu parecia me esquecer disso sempre que o sonho voltava.
Muitos leitores provavelmente se identificam com essa experiência.
Nós passamos cerca de um terço da vida dormindo e os sonhos que temos nesse estado causam grande interesse. Eles trazem experiências em nível sensorial, emocional e mental.
Embora possam ser produzidos em qualquer fase do sono, os sonhos são mais frequentes durante o REM (Rapid Eye Movement, em inglês), fase do sono caracterizada por movimentos oculares rápidos.
Embora nem todas as pessoas recordem as histórias vividas durante o descanso noturno, algumas têm sonhos recorrentes – com o mesmo conteúdo, que se repetem. De fato, cerca de 75% das pessoas adultas relatam ter tido sonhos recorrentes em algum momento da vida.
Os mais típicos nos fazem sentir que estamos sendo perseguidos, que estamos perdendo nossos dentes, que estamos caindo no vazio ou que aparecemos em público nus ou usando roupas estranhas.
Ou seja, a maior parte desses sonhos tem um aspecto negativo. E eles frequentemente surgem durante períodos de estresse e mal-estar psicológico.
Por que eles acontecem? Podemos fazer algo para eliminá-los? Para responder a essas perguntas, primeiro é preciso analisar, de forma geral, por que sonhamos.
Consolidação de recordações e treinamento
Não existe consenso científico sobre a origem e a função dos sonhos, mas sabemos que eles geralmente estão ligados às vivências arquivadas na memória. É provável que estejam relacionados à integração das nossas experiências.
Segundo alguns modelos, os sonhos podem ser o resultado de um processo de consolidação de recordações, produzido pela reativação de áreas cerebrais relativas à memória. Assim, existiria uma espécie de roteiro armazenado na nossa mente e sua ativação produziria o surgimento do sonho.
Por outro lado, já se conjecturou que sonhar tem um papel relevante do ponto de vista evolutivo: serviria para treinar comportamentos de fuga ou evitar situações ameaçadoras.
Tipos de sonhos recorrentes
Em primeiro lugar, é importante diferenciar os sonhos recorrentes que fazem parte de uma patologia e aqueles cuja causa é desconhecida e não são associados a problemas de saúde.
Os sonhos recorrentes idiopáticos (sem causa conhecida) estão relacionados a temas como a perda de um ente querido.
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A última edição do Manual de Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), publicado pela Associação Norte-Americana de Psiquiatria, relaciona dois transtornos que têm, como um dos seus principais sintomas, esse tipo de vivência onírica repetida: o transtorno do pesadelo e o transtorno de estresse pós-traumático.
Esses dois transtornos constituem psicopatologias, ou seja, eles provocam deterioração clínica e interferem claramente na vida da pessoa afetada.
No caso do transtorno de estresse pós-traumático, é muito frequente que as pessoas sintam a repetição exata do evento traumático vivido. Já os sonhos recorrentes idiopáticos (sem causa conhecida) estão relacionados a temas mais gerais, como a perda de um ente querido ou o término de um relacionamento.
Universais, mas também muito pessoais
Para entender esses sonhos, vários fatores precisam ser considerados.
De um lado, existem sonhos comuns em diferentes épocas ou culturas. Alguns dos mais comuns, como já indicamos, são cair no vazio, sofrer um ataque ou perseguição, tentar fazer alguma coisa várias vezes ou sentir que os dentes estão caindo.
Esse último sonho já foi associado a algum processo de irritação dental, o que indicaria a possibilidade de que certos estímulos sensoriais seriam incorporados aos sonhos.
Já outros sonhos, como o de cair, são frequentemente acompanhados por um tremor muscular e às vezes ocorrem no momento em que estamos começando a dormir.
Essa experiência recebe o nome de tremor hipnagógico ou espasmo mioclônico. Ela pode ser uma resposta à tentativa do cérebro de continuar controlando o corpo durante a transição entre a vigília e o sono.
Alguns dos sonhos recorrentes mais típicos nos fazem sentir que aparecemos em público nus ou usando roupas estranhas.
ROBERT DALY/GETTY
Por outro lado, apesar da existência de temas comuns, a repetição de um mesmo sonho com frequência na mesma pessoa indica que seu significado está relacionado a fatores psicológicos. Assim, o conteúdo pode mudar ao longo do tempo e tem um sentido diferente para cada indivíduo.
Os sonhos recorrentes são produzidos com frequência durante períodos de estresse, embora haja pessoas que o experimentam durante anos ou até por toda a vida. Em alguns casos, eles desaparecem quando o estado de ânimo da pessoa melhora, mas reaparecem quando ele volta a piorar. A falta de sono, por exemplo, foi associada aos pesadelos repetidos.
Portanto, embora existam algumas hipóteses sobre os conteúdos concretos repetidos ou sobre sua relação com as preocupações das pessoas, ainda não sabemos explicar por que existem temas que se manifestam com mais frequência do que outros.
Reflexo das nossas preocupações
A hipótese de continuidade afirma que os sonhos refletem estados e preocupações presentes durante a vigília.
Por isso, existe maior probabilidade de que eles sejam negativos se as pessoas sofrerem de mal-estar psicológico. Já os pesadelos recorrentes são mais frequentes em pessoas ansiosas ou com tendência a experimentar emoções negativas com grande intensidade.
É preciso também destacar que os sonhos recorrentes são produzidos com mais frequência em pessoas que sentem que suas necessidades psicológicas estão frustradas.
Além disso, as pessoas que tinham sonhos recorrentes e deixam de tê-los passam a sonhar com coisas mais positivas, mesmo em comparação com aqueles que nunca tiveram esse tipo de experiência onírica. Essa observação apoiaria a teoria de que existe uma relação entre os sonhos e a adaptação psicológica.
Os sonhos que se repetem podem refletir algum tipo de preocupação ou conflito não resolvido que a pessoa precisa processar e enfrentar. Por isso, eles desempenham um papel importante na regulação emocional. Sonhar serviria como uma espécie de treinamento.
Podemos fazer algo para eliminá-los?
Geralmente, os sonhos recorrentes não causam problemas sérios e, por isso, não é preciso recorrer a tratamentos.
Mas algumas pessoas decidem tentar reduzi-los com intervenções psicológicas. Essas intervenções conseguiram melhoras – até nos casos de sonhos pós-traumáticos.
Já o treinamento com os chamados sonhos lúcidos – quando estamos conscientes do que estamos sonhando – permitiria modificar a vivência durante o episódio.
Por isso, se tivermos sonhos recorrentes, em princípio não devemos nos preocupar. Mas, se sentirmos que eles causam grande perturbação nas nossas vidas ou que podem ser uma reação a algum problema subjacente, podemos consultar um especialista.
* Laura Río Martínez é doutora em psicologia, pesquisadora e professora da Universidade Internacional de Valência, na Espanha.
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